Algumas hipóteses sobre a transformação do habitus

Zaia Brandão e Helena Altmann - PUC-Rio

 
[...] a teoria de P. Bourdieu não se reduz a um sociologismo vulgar que relaciona todo o pensamento às suas condições sociais de produção [...] A noção de habitus é bem mais rica e sutil. Ela visa dar conta ao mesmo tempo dos determinismos inconscientes que marcam as nossas representações e das capacidades estratégicas e criativas. (Jean-François Portier, 2002, p.5).

        Este artigo tem por objetivo discutir a questão da transformação do habitus. Entre as críticas mais comuns à sua obra está o questionamento do caráter mecânico do habitusno processo de reprodução social.

        A transformação do habitus é um dos pontos menos trabalhados explicitamente por Pierre Bourdieu em sua obra. Estas críticas podem ser encontradas em revistas ou livros especializados na obra deste autor e, especialmente, entre estudantes e pesquisadores que se aproximam pela primeira vez do pensamento de Bourdieu. Em uma disciplina que ministrei na pós-graduação, que estudou a obra de Bourdieu, questões sobre as possibilidades de mudança do habitus, de transformação social, de autonomia e de ação do indivíduo eram reiteradamente levantadas pelos participantes.

        Em um número especial da revista Sciences Humaines, sobre a obra de Pierre Bourdieu, Jean-François Dortier (2002) critica a incapacidade da sociologia deste autor de pensar a mudança. Segundo ele, o habitus existe, mas, nas sociedades abertas, os indivíduos são submetidos a múltiplos quadros de socialização, que não fecham os atores em gaiolas de ferro. Na perspectiva de Dortier, a implacável da dominação do indivíduo pelo habitus e a força da violência simbólica não permitiriam os processos de mudança ou de emancipação. Já Martine Founier (2002) critica Bourdieu por substituir um fatalismo genético por um fatalismo sociológico.

        São estas posições que nos motivam a refletir aqui sobre a transformação do habitus na obra de Pierre Bourdieu.

1. Sobre as funções da noção de habitus

            O habitus é um sistema de esquemas de percepção, de apreciação e de ação, em outras palavras, um conjunto de conhecimentos práticos adquiridos ao longo do tempo que permite perceber e agir num universo social. Ele se constitui a partir da exposição repetida a condições sociais definidas, imprimindo, no seio dos indivíduos, um conjunto de disposições duráveis e transponíveis que decorrem da interiorização da necessidade de seu meio social. Como afirma Loïc Wacquant, divisões sociais e esquemas mentais são estruturalmente homólogos, pois estão geneticamente ligados: os esquemas resultando da incorporação das divisões. Habitus são estruturas de objetividade de segunda ordem, ou seja, versões incorporadas das estruturas de objetividade de primeira ordem. Assim, a relação entre o agente social e o mundo não é uma relação entre um sujeito (ou uma consciência) e um objeto, mas uma relação de “cumplicidade ontológica” – ou de “possessão” mútua – entre o habitus, como princípio socialmente constituído de percepção e de apreciação, e o mundo que o determina (Bourdieu e Wacquant, 1992). Assim, falar de habitus é colocar que o individual, e mesmo o pessoal e o subjetivo são sociais, coletivos. O habitus é uma subjetividade socializada.

        Outrossim, Bourdieu esclarece que a principal função da noção de habitus é marcar uma ruptura com a filosofia intelectualista da ação. Sua intenção é escapar da filosofia do sujeito sem sacrificar o agente, como também da filosofia da estrutura, sem deixar de levar em conta os efeitos que ela exerce sobre o agente e através dele (idem).

        Esta questão é importante de ser pontuada, pois grande parte das críticas endereçadas à obra de Bourdieu argumenta que ela não considera o potencial de resistência dos indivíduos que, através de decisões racionais, agem e intervêm nas suas disposições. Parece-nos, no entanto, que este modo de argumentação não é condizente com o modo de Bourdieu pensar o indivíduo, melhor dizendo, o agente, e seu modo de agir em um dado contexto social, pois sua sociologia da ação parte justamente de uma crítica às leituras intelectualistas da ação.

        Bourdieu critica toda a pretensão a uma razão universal ou abstrata, o que chama de ilusão racionalista. Critica todas as formas de individualismo metodológico ou a teoria da escolha racional que encara o indivíduo como um tipo de ser associologizado que guiaria sua vida apenas com recursos da razão. No entanto, ele também descarta a posição inversa, de um determinismo implacável que faria o indivíduo um tipo de autômato social, um agente social prisioneiro de seus determinismos (Dortier, 2002: 55).

        Bourdieu argumenta que, na teoria da ação racional, o ator é concebido como a projeção imaginária do sujeito douto no agente que age. A ação é vista como uma escolha intencional de um ator livre de todos condicionamentos econômicos e sociais. Ela ignora a história individual e coletiva dos agentes através da qual as estruturas de preferência que lhes habitam se constituem em uma dialética temporal complexa com as estruturas objetivas que lhes produzem e que eles tendem a reproduzir. (BOURDIEU e WACQUANT, 1992:

 
O habitus é um operador de racionalidade, mas de uma racionalidade prática, imanente a um sistema histórico de relações sociais e portanto transcendente ao indivíduo. As estratégias que ele “gera” são sistemáticas mas ad hoc na medida em que elas são desencadeadas pelo encontro com um campo específico. O habitus é criador, inventivo, mas nos limites de suas estruturas (BOURDIEU ; WACQUANT, 1992, p.26).

        O indivíduo é situado e “enredado” pelo espaço social que o contem, mas ele pode compreendê-lo e agir sobre ele. A oposição tradicional em ciências sociais entre determinismo social e individualismo metodológico é, segundo Bourdieu, uma falsa oposição. Uma das funções principais do habitus é descartar dois erros complementares: de um lado o mecanicismo, que vê a ação como um efeito mecânico do constrangimento de causas externas; de outro o finalismo, que, com a teoria da ação racional, vê que o agente age de maneira livre e consciente. Com a noção de habitus, Bourdieu pretende descartar uma outra oposição sumária: aquela que opõe, em ciências sociais, indivíduo e sociedade. Não só o indivíduo é situado em um universo social particular, mas o universo social é inscrito nele. Ele engloba a sociedade tanto quanto ela o engloba (Dortier, 2002, p.56-7).

        Cabe destacar, outrossim, que a sociologia da ação de Bourdieu constrói uma interpretação das razões práticas, aquelas que do seu ponto de vista são as mais freqüentes na vida social: as que incorporadas socialmente permitem aos agentes agir segundo o “senso do jogo”, ou seja, agir no espaço social (sociedade) de acordo com as regras do jogo social (que podem variar segundo os diferentes campos) sem necessidade de, a cada momento, recorrer a razão para decidir o que fazer. Ao focalizar em sua sociologia as razões práticas, o autor não nega a ação racional, simplesmente enfatiza o peso das razões práticas na vida social.

2. Hipóteses sobre as condições de transformação dos habitus

        Bourdieu tem chamado atenção para a indissociável relação entre os campos e os habitus. O habitus é um saber agir aprendido pelo agente na sua inserção em determinado campo. As “estruturas” do campo são importantes na formação do habitus, no entanto, a ação dos agentes não é completamente determinada por elas. Bourdieu fala em “sentido do jogo”: o jogador apreende as regas do jogo, mas as regras não prevêem o que irá acontecer, tampouco como o jogador irá jogar. Note-se que mostrar que as práticas sócias têm determinantes sociais, não é o mesmo que afirmar as práticas sejam totalmente determinadas.

        Os agentes só conseguem participar do “jogo” específico de cada campo se dotados de um mínimo de capital específico; os campos, por onde os agentes circulam, levados pela necessidade de estar no jogo social, são os locus onde operam e se alteram os habitus em conseqüência da mobilização de tipos diferentes de capital. O capital específico (artístico, científico, religioso...) é a moeda própria a cada campo, cuja posse é a condição para que os agentes atuem (joguem o jogo) num determinado campo e possam, em virtude de suas jogadas, acumular capital específico. Entretanto, os “lances” e “jogadas” vão depender do volume e da estrutura global do capital acumulado pelos agentes em suas experiências anteriores nos diferentes campos, em articulação com o capital específico. Essa movimentação dos agentes no espaço social (trajetórias/estratégias) – atravessando os diferentes campos com relações e permanências diferenciadas segundo os interesses que os mobilizam (sempre consistentes com o habitus de que são dotados) – repercute na modificação da estrutura e volume de capitais dos diferentes agentes.

        Assim, as possibilidades de transformação dos habitus dos agentes podem ser pensadas, por um lado, a partir da movimentação dos agentes entre diferentes campos sociais, e, por outro, a partir da movimentação e das lutas travadas dentro do próprio campo. Outrossim, a transformação do habitus pode ocorrer através de um trabalho de análise reflexiva (portanto racional) sobre as próprias disposições, conforme menciona Bourdieu em algumas entrevistas. Esta será a terceira hipótese que buscaremos aqui desenvolver.

2.1. Lutas que produzem mudanças

        Bourdieu entende o campo como um local de lutas permanentes, que visam a conservar ou a transformar as relações de forças ali presentes. Por conseqüência, o campo é um lugar de mudanças permanentes. Como afirma Louis Pinto, “Pierre Bourdieu jamais comparou um campo a um jogo de forças cegas. Num campo existem reais possibilidades de transformação, mas que são muito diferentes conforme a posição ocupada” (PINTO, 2000, p.10).

        Por sua vez, os agentes sociais não são partículas mecanicamente atiradas e impelidas por forças externas. São antes portadores de capital e, segundo sua trajetória e a posição ocupada no campo em virtude da sua dotação de capital (volume e estrutura), eles têm uma propensão a se orientar ativamente, seja em direção à conservação da distribuição do capital, seja em direção a subverter esta distribuição. Considerando que o habitus se forma a partir da inserção do agente nos campos sociais e das lutas travadas no campo, mudanças nas posições no campo e na distribuição de capitais implicam em modificações no próprio habitus.

        Para Loïc Wacquant, Bourdieu não compartilha da visão fatalista do mundo que lhe é atribuída por aqueles que lêem na sua obra um hiper-funcionalismo politicamente estéril. No seio de cada campo, a hierarquia estabelecida é continuamente contestada e os princípios que sustentam a estrutura do campo podem ser desafiados e colocados em questão. A onipresença da dominação não exclui a possibilidade de uma relativa democratização. A medida em que o campo do poder se torna mais diferenciado, que a divisão do trabalho de dominação se torna mais complexa, envolvendo um número cada vez maior de agentes, cada um com seus interesses específicos, a medida em que o universo é invocado nos sub-campos cada vez mais numerosos que constituem o espaço do jogo da classe dominante, as chances de fazer progredir a razão aumentam (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p.41-2). [revisar tradução]

        Bourdieu (idem, p.110-1) afirma que os agentes sociais são o produto da história, da história de todo o campo social e da experiência acumulada ao curso de uma determinada trajetória no sub-campo determinado. Eles determinam ativamente, por intermédio de categorias de percepção e de apreciação social, historicamente constituídas, a situação que lhes determina. Pode-se assim dizer que os agentes sociais são determinados somente na medida em que eles se determinam: mas as categorias de percepção e de apreciação que estão no princípio desta (auto)determinação são elas mesmas, em grande parte, determinadas pelas condições econômicas e sociais de sua constituição.

        Volta-se aqui a questão de que, para Bourdieu, os agentes nunca estão livres da coação das condições e dos condicionamentos sociais – que produzem o habitus. Não existe para ele um sujeito a priori, ahistórico, que não seja sempre, em alguma medida, determinado pelo social. No mundo social, há estruturas objetivas independentes da consciência e da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou impor-se sobre suas práticas ou representações. As práticas dos agentes, no entanto, não serão ações mecânicas produzidas pelas estruturas sociais, mas o resultado da relação estabelecida pelos agentes nos campos.

 
O habitus não é o destino que o viram algumas vezes. Sendo produto da história, é um sistema de disposições abertas que não cessa de ser afrontado por experiências novas e, portanto, não cessa de ser afetado por elas. Ele é durável, mas não imutável (BOURDIEU. In: BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p.108-9).

2.2. Movimentação pelo espaço social

        A necessidade de avançar no conhecimento empírico do processo de transformação permanente das disposições duráveis obriga os pesquisadores a formularem algumas hipóteses sobre as bases das conversões e reconversões dos habitus.

        Uma hipótese relaciona-se à extensão e freqüência da movimentação dos diferentes agentes pelo espaço social: os agentes em função de seus habitus (adquiridos sob determinadas condições de vida e de acordo com uma particular trajetória social) têm maior ou menor probabilidade de circular e jogar nos diferentes campos. Por sua vez, a maior ou menor circulação/atuação pelos/nos campos sociais implicará em uma variedade de graus de complexidade dos habitus. Nossa hipótese é que a variedade de capitais na estruturação dos habitus, decorrente da freqüência com que os agentes se movem e “jogam” em vários campos, dota-os de uma maior plasticidade que se desdobra em uma crescente e mais pronta possibilidade de conversões e reconversões das disposições para pensar, agir, sentir e gostar revestindo-as de roupagens cada vez mais complexas e distintas1. Nesse processo a “durabilidade”, uma das características dos habitus, torna-se mais difícil de ser apreendida em virtude da sua complexidade.

        As condições de acumulação de capital são proporcionais às oportunidades de jogo que os agentes encontram nos campos sociais. Essas oportunidades, entretanto, não parecem ser circunstanciais ou aleatórias, pois estão normalmente balizadas pelo volume e estrutura de capital dos agentes relacionados com as mesmas condições (de volume e estrutura de capitais) dos demais agentes envolvidos no jogo em um campo específico: “no social tudo é relacional” afirma-nos Bourdieu em várias ocasiões.

        Desta perspectiva, a aquisição e acumulação de capitais específicos (econômico, lingüístico, científico, esportivo etc.) implicam em condições objetivas de estabelecer relações com os demais agentes num determinado campo, ações essas caracterizadas pelas posições relativas dos agentes naquele campo específico (e que tendem a guardar uma certa homologia com as posições relativas em outros campos) e que conferem a cada agente um “sentido do jogo” mais ou menos adequado às condições de transformação ou manutenção das posições relativas dentro do campo. É lógico que quanto mais capital específico acumulado mais condições têm os agentes de dominar o jogo, embora seja importante lembrar que, na perspectiva dinâmica das relações habitus/capitais-campos, nenhuma conquista de posição é definitiva, pois o espaço social é constituído por um conjunto de campos relativamente autônomos, mas que, ainda assim, alteram-se permanentemente em função da movimentação dos agentes intra e extra campos.

        A complexificação do habitus decorrente das possibilidades de circulação dos agentes por vários campos hipotéticamente oferece maiores condições da sua diversificação estrutural, assim como de aumento do volume total do capital. Assim, os agentes dotados de habitus complexos em princípio otimizam suas chances de alcançar posições sociais mais elevadas no espaço social. Num sentido inverso, certos grupos de agentes que, em virtude das condições sociais de vida, são levados a ficar a maior parte do dia no trabalho, têm menos oportunidades de atuar em diferentes campos e em conseqüência da estrutura e volume de capital mais simples teriam diminuídas as suas chances de conversão e reconversão de capitais e, portanto, de atuar vantajosamente nos diferentes campos.

        Imaginemos duas situações ideais-tipo para pensar o problema em tela:

  • Os agentes, que por origem social, desde a constituição do habitus familiar se vêem expostos a uma pauta de socialização marcada pela experiência dos pais de participar do “jogo social” em uma grande variedade de campos (escolar, cultural, econômico, religioso, político...); familiarizam-se desde a mais tenra idade com a experiência de deslocamentos freqüentes por campos sociais e, por isso mesmo a diversidade de formas de agir são acionadas com facilidade face a necessidade permanente de conversões e reconversões de capitais para se adequarem às exigências e motivações específicas dos jogos sociais que se desenvolvem nos diferentes campos. É óbvio que esse processo de socialização primária (familiar) fomenta uma plasticidade maior às formas de agir, pensar e sentir que facilitando a acumulação e diversificação de capital desde cedo.

  • Outros agentes, também por origem social, acabam submetidos a um processo de socialização familiar em que a rotina diária dos pais lhes oferece poucas condições de circulação social: os pais acordam entre 5 e 6 horas da manhã, gastam de uma a duas horas de condução até o trabalho; trabalham durante 8 horas em atividades no mais das vezes repetitivas, manuais e que oferecem poucas condições de interações sociais diversificadas2; almoçam, normalmente, no próprio local de trabalho e ao final da tarde no retorno gastam de uma a duas horas de volta para a casa onde enfrentam os mesmos problemas e tensões cotidianas que procuram aliviar em frente da televisão antes de ir dormir e recomeçar a rotina diária. É óbvio que as disposições duráveis desse grupo de agentes são forjadas em sua grande parte na situação familiar (onde se constituem os habitus primários) e, secundariamente nas relações com a vizinhança e no trabalho, onde provavelmente esses agentes também experimentam a mesma situação, em que a posição social ocupada no campo do trabalho e as exigências de sobrevivência dominam o seu cotidiano e os remetem a jogadas sociais previsíveis que dificilmente fomentam estratégias sociais com probabilidades de levá-los a deslocamentos ascencionais.

        Confrontadas as duas situações ideais-tipo percebe-se que no primeiro caso a diferenciação do habitus em relação aos dos familiares tende a crescer na idade adulta, enquanto que no segundo caso, os agentes tendem a desenvolver e reproduzir disposições sempre mais assemelhadas às dos pais. Na primeira situação, os agentes teriam mais facilidade de reconfigurar o habitus de acordo com necessidades surgidas a partir da suas inserções nos campos sociais.

2.3. Análise reflexiva

        Um outro modo de modificar as disposições adquiridas seria, conforme aponta o autor em algumas entrevistas, a partir de um trabalho de análise reflexiva, que pode ser feito pelo próprio agente em relação às suas disposições e aos campos nos quais ele está inserido. Neste sentido, a pesquisa sociológica contribuiria para o reconhecimento, por parte do agente, dos determinantes sociais de sua prática.

        Em uma entrevista, Bourdieu afirma que, ao enunciar os determinantes sociais das práticas, o sociólogo oferece a possibilidade de uma certa liberdade em relação a estes determinantes. Para ele,

 
[...] é através da ilusão de liberdade em relação às determinações sociais que se dá a liberdade de se exercerem as determinações sociais. [...] Paradoxalmente, a sociologia liberta libertando da ilusão de liberdade, ou, mais exatamente, da crença mal colocada nas liberdades ilusórias. A liberdade não é um dado, mas uma conquista, e coletiva. (BOURDIEU, 1990, p.28).

        A liberdade – que será sempre relativa – poderia, então, ser alcançada por um trabalho de reapropriação dos determinantes. É neste sentido que, em outra ocasião, o autor fala que a tarefa da sociologia é desnaturalizar e desfatalizar o mundo social (BOURDIEU; WACQUANT, 1992, p.40), percebendo-se assim suas possibilidades de transformação.

        Durante outra entrevista, ele fala em sócio-análise como um meio de viabilizar uma modificação do habitus:

 
O habitus também pode ser transformado através da sócio-análise, a tomada de consciência que permite ao indivíduo voltar-se sobre suas disposições. Mas a possibilidade e a eficácia deste tipo de auto-análise são elas mesmas determinadas em parte pela estrutura original do habitus em questão, e em parte pelas condições objetivas sob as quais se produz este tipo de consciência. (ibid, p. 239).

        Apesar de ser difícil de controlar a inclinação primeira do habitus, a análise reflexiva nos ensina que nós mesmos atribuímos a situação uma parte da força que ela tem sobre nós. Deste modo, trabalhar para modificar nossa percepção da situação, possibilitaria modificar nossa reação a ela. A análise reflexiva torna-nos capaz de dominar, até certo ponto, algumas determinações que se exercem através da relação de cumplicidade imediata entre posição e disposição. Bourdieu afirma ainda que o trabalho de gestão das próprias disposições só é possível ao preço de um trabalho constante e metódico de explicitação (Idem, p.111-2).


1 No sentido de distinguir, diferenciar, hierarquizar e, portanto “manter distâncias”.

2 No sentido de trocas sociais ampliadoras do universo simbólico e material.






Referências Bibliográficas:

BOURDEIU, Pierre. Meditações pascalinas. Tradução Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 324 p.

_______. “Fieldwork in philosophy”. In: Coisas Ditas. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1990. p.15-48.

BOURDEIU, Pierre e WACQUANT, Loïc. Réponses – Pou une anthropologie réflexive. Paris: Ed. du Seuil, 1992. 300 p.

DORTIER, Jean-François. Les idées pures n’existent pas. Sciences Humaines “La oeuvre de Pierre Bourdieu”, Numéro Spécial Pierre Bourdieu, p. 13-15, 2002.

_______. À propos de Méditations pascaliennes. Sciences Humaines “La oeuvre de Pierre Bourdieu” , Numéro Spécial Pierre Bourdieu, p. 54-57, 2002.

FOURNIER, Martine. À propos de... Lês Héritier, lês étudiants e la culture. Sciences Humaines “La oeuvre de Pierre Bourdieu” , Numéro Spécial Pierre Bourdieu, p.13-15, 2002.

PINTO. Louis. Pierre Bourdieu. Teoria do mundo social. Tradução Luiz Alberto Manjardim. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000. 129 p.

TROGER, Vincent. Bourdieu et l’école: la democratization désenchantée. Sciences Humaines “La ouvre de Pierre Bourdieu” , Numéro Spécial Pierre Bourdieu, p.16-23, 2002.